Matéria do Mês de Janeiro (2010)
"Recebi cem bolinhos de arroz cozidos a vapor e um cesto de doces. O dia de Ano-Novo marca o primeiro dia, o primeiro mês, o início do ano e o início da primavera. Quem celebra esse dia tornar-se-á mais virtuoso e será amado por todos. Será como a lua que gradualmente se torna cheia à medida que se move do oeste para o leste ou como o sol que se torna cada vez mais brilhante em sua trajetória do leste para o oeste. Considerando a questão de onde estão o inferno e o Buda, um sutra diz que o inferno está debaixo da terra enquanto um outro diz que o Buda está no oeste. Entretanto, uma análise mais cuidadosa revela que ambos existem em nosso próprio corpo. De fato, o inferno está no coração da pessoa que insulta seu pai ou desrespeita sua mãe. É como a semente de lótus que contém tanto a flor como o fruto. Da mesma forma, o Buda habita nosso coração. Por exemplo, a pederneira contém o potencial para produzir fogo e as joias possuem um valor intrínseco. Nós, seres humanos, não enxergamos nem nossos próprios cílios, que estão tão próximos, nem o céu distante. Da mesma maneira, não conseguimos compreender que o Buda existe em nosso coração. Podemos questionar como poderia existir o Buda dentro de nós se este corpo humano, gerado do sangue dos nossos pais, é a origem das três impurezas e o local dos desejos carnais. Entretanto, ponderando reiteradamente, compreendemos ser razoável. A pura flor de lótus floresce do fundo lamacento de um lago; a fragrância do sândalo cresce da terra; as graciosas flores de cerejeira vêm da árvore; a bela Yang Kuei-fei nasceu de uma mulher de classe inferior; e a lua nasce detrás das montanhas para espalhar a luz sobre elas. A desgraça vem da boca de uma pessoa e arruína-a, enquanto a boa sorte vem do coração e torna a pessoa digna de respeito. A sinceridade de fazer oferecimentos ao Sutra de Lótus no início do Ano-Novo é como as flores de cerejeira que desabrocham da árvore, uma flor de lótus que se abre em um lago, as flores de sândalo que desprendem sua fragrância na Montanha das Neves, ou como a lua começando a subir. Agora, o Japão, fazendo-se inimigo do Sutra de Lótus, convidou o infortúnio de mil milhas de distância, ao passo que aqueles que crêem no Sutra de Lótus reúnem a boa sorte de dez mil milhas de distância. A sombra é formada pelo corpo e tal como a sombra segue o corpo, os infortúnios cairão no país cujas pessoas são hostis ao Sutra de Lótus. Os crentes no Sutra de Lótus, por outro lado, são como o sândalo dotado de fragrância. Eu lhe escreverei novamente. Nitiren. Quinto dia do primeiro mês. Em resposta à esposa de Omosu."
Resumo e cenário histórico
Nitiren Daishonin escreveu esta carta para a esposa de Omosu, irmã mais velha de Nanjo Tokimitsu, em agradecimento pelos sinceros oferecimentos enviados por ela no início do ano. A carta é datada de 5 de janeiro, porém sem a indicação do ano. Assim, embora se saiba que Nitiren Daishonin tenha escrito esta carta no Monte Minobu, nos últimos anos de sua vida, o ano exato não é conhecido.
O Ano-Novo sempre foi considerado uma época de deixar o passado para trás e começar de novo. De acordo com o calendário lunar japonês utilizado na época de Daishonin, o Ano-Novo coincidia também com o início da primavera.
Quando uma pessoa se dedica seriamente à prática budista, é a sua fé no presente, e não o seu carma do passado, que exerce a influência determinante em sua vida. Assim, com esse grande poder da fé, nós podemos “começar a partir de agora”, em qualquer momento que nós determinarmos. Contudo, o dia de Ano-Novo é uma ocasião especificamente destacada para esse propósito, quando toda atmosfera que nos cerca apoia o espírito de começar renovadamente. Nitiren Daishonin nos ensina que celebrar esse dia fazendo oferecimentos ao Gohonzon é uma fonte de imensa boa sorte. O ato de fazer oferecimentos no Ano-Novo serve para expressar tanto a nossa gratidão como a decisão de continuar a prática budista, aprofundando ainda mais a nossa fé no ano que se inicia.
O budismo ensina que o presente momento abrange o futuro, e que cada causa contém o seu efeito. Nesta perspectiva, a maneira como saudamos o Ano-Novo é bastante importante. Uma grande diferença pode resultar entre considerá-lo um dia a mais entre muitos outros, ou como um novo início que abriga em si as sementes do desenvolvimento do ano inteiro.
Explanação
“A pura flor de lótus floresce do fundo lamacento de um lago; a fragrância do sândalo cresce da terra; as graciosas flores de cerejeira vêm da árvore; a bela Yang Kuei-fei nasceu de uma mulher de classe inferior; e a lua nasce detrás das montanhas para espalhar a luz sobre elas. A desgraça vem da boca de uma pessoa e arruína-a, enquanto a boa sorte vem do coração e torna a pessoa digna de respeito.”
No trecho anterior, em relação à “questão de onde estão o inferno e o Buda”, Daishonin afirma que “uma análise mais cuidadosa revela que ambos existem em nosso próprio corpo”. Apesar de falhos e imperfeitos, todos possuímos o poder para manifestar o estado de Buda. Daishonin ilustra esse fato com exemplos de algo magnífico emergindo de algo comum. A pura flor de lótus floresce no lodo, a perfumada madeira de sândalo cresce em meio à sujeira, e a mais bela mulher da China, Yang Kuei-fei (719–756), predileta do imperador Hsiian-Tung, o sexto soberano da dinastia T’ang, era de origem humilde. Assim como a lua brilhante surge detrás da escuridão das montanhas para iluminá-las, a nossa natureza de Buda, ativada pela recitação do Nam-myoho-rengue-kyo, emergirá do interior de nossa vida e a fará brilhar.
Como temos em nosso interior o potencial tanto para o sofrimento como para a felicidade, Daishonin nos ensina com a frase “A desgraça vem da boca de uma pessoa e arruína-a, enquanto a boa sorte vem do coração e torna a pessoa digna de respeito” que nossa condição de vida predominante depende, no final, de nós mesmos. Nesse contexto, “a desgraça vem da boca de uma pessoa e arruína-a” representa uma atitude caluniosa ou depreciativa em relação à Lei, ou à dignidade inata da vida. Como praticantes do Budismo Nitiren, em princípio não cometemos a calúnia fundamental de afrontar diretamente o próprio Gohonzon. Mas, quando lamentamos nossos sofrimentos, estamos na verdade nos esquecendo e, consequentemente, menosprezando o poder do Gohonzon e nossa própria natureza de Buda que pode nos capacitar a vencer nossas dificuldades. Além disso, quando depreciamos os companheiros da prática da fé por suas falhas — por mais que estes realmente tenham cometido erros — nós, de certo modo, menosprezamos o poder da prática para fazê-los aprender e elevar seu estado de vida. Tudo isso pode ser entendido como um exemplo de “desgraça que vem da boca”.
Já “a boa sorte vem do coração” indica a fé na Lei Mística. Inclinações mentais positivas, como a sinceridade elogiada por Nitiren nessa carta, bem como a alegria, consideração, paciência e benevolência são, todas, fontes de mérito e de bom carma. Momento a momento, criamos nosso destino com nossos pensamentos, palavras e ações. Esses “três tipos de atos” são as três vias abertas ao ser humano para criar o carma, seja ele bom ou mau. Assim, com fé no coração, podemos edificar o melhor carma de todos.
“Coração” também pode ser entendido como um momento de vida, ou itinen. A vida de um indivíduo, a cada instante, manifesta um dos Dez Mundos que se torna a base de seus pensamentos, palavras e ações naquele momento. Portanto, é importante elevar a tendência básica de nosso momento de vida para que as causas que fazemos se originem dos estados mais elevados, em vez dos estados inferiores. Um coração de fé é aquele que nos permite elevar a nós próprios acima das quatro condições inferiores (Inferno, Fome, Animalidade e Ira) e estabelecer o estado de Buda como nossa tendência básica de vida.
“A sinceridade de fazer oferecimentos ao Sutra de Lótus no início do Ano Novo é como as flores de cerejeira que desabrocham da árvore, uma flor de lótus que se abre em um lago, as flores de sândalo que desprendem sua fragrância na Montanha das Neves, ou como a lua começando a subir. Agora, o Japão, fazendo-se inimigo do Sutra de Lótus, convidou o infortúnio de mil milhas de distância, ao passo que aqueles que creem no Sutra de Lótus reúnem a boa sorte de dez mil milhas de distância. A sombra é formada pelo corpo e tal como a sombra segue o corpo, os infortúnios cairão no país cujas pessoas são hostis ao Sutra de Lótus. Os crentes no Sutra de Lótus, por outro lado, são como o sândalo dotado de fragrância."
Como a sinceridade na fé é, podemos dizer, o primeiro passo na jornada da iluminação, Nitiren Daishonin elogia nessa passagem a expressão de tal sinceridade no Ano-Novo, comparando-a às “flores de cerejeira que desabrocham de uma árvore, uma flor de lótus que se abre em um lago, as flores de sândalo que desprendem sua fragrância na Montanha das Neves, ou como a lua começando a subir”. Essas ilustrações são bastante similares às usadas na parte anterior para descrever a manifestação da natureza de Buda a partir do interior da vida do mortal comum. Antes de abraçar o Gohonzon, somos como árvores de cerejeira sem flores, um lago turvo sem flor de lótus, ou a lua antes de se elevar. Em outras palavras, ainda temos de manifestar o estado de Buda. Nós geramos a iluminação interiormente por meio de oferecimentos ao Sutra de Lótus. Os oferecimentos incluem não somente doações materiais como frutas depositadas no oratório ou doações financeiras, mas a dedicação de nossa vida à Lei Mística. Gongyo e Daimoku são os oferecimentos fundamentais pelos quais manifestamos o Estado de Buda. Nossos esforços para ensinar a prática da recitação do Nam-myoho-rengue-kyo a outras pessoas e para provar a sua validade na sociedade também são oferecimentos importantes. O próprio espírito revigorado de devotar a vida ao budismo, como expressado nas resoluções de Ano-Novo, constitui “oferecer presentes ao Sutra de Lótus”. Uma resolução, contudo, é também uma promessa que devemos nos empenhar para cumprir, caso realmente desejamos reunir “a boa sorte de dez mil milhas de distância”.
O Sutra de Lótus, nesta passagem, indica o Nam-myoho-rengue-kyo dos Três Grandes Ensinos Fundamentais, a realidade última ou Lei Mística que permeia o Universo e todas as existências fenomenais dentro dele. A atitude de uma pessoa com relação a essa Lei – empenhar-se para despertar para ela, louvá-la e tomá-la como base de sua vida, ou, por outro lado, permanecer na ignorância sobre a mesma e caluniá-la – determinará sua felicidade ou infelicidade e influenciará todos os aspectos de sua vida. Isto é o que Daishonin quer dizer com a “sombra é formada pelo corpo...”. Harmonizando a vida com a Lei, a pessoa ganha sabedoria e boa sorte. Agindo contra ela, forma sua ilusão e sofre perdas. Está fora de questão, na perspectiva budista, a existência de qualquer agente sobrenatural que conceda benefício ou punição. Ganho ou perda são ações naturais da Lei Mística.
Da mesma maneira, um país onde as pessoas baseiam sua vida na Lei Mística prosperará, enquanto aquele no qual as pessoas são ignorantes da Lei e, consequentemente caluniam a dignidade da vida, sofrerá o infortúnio. Quanto ao Inferno e ao Buda, como “ambos existem em nossos próprios corpos”, um país onde as pessoas abraçam a Lei se tornará a terra do Buda, ao passo que um país onde as pessoas se desprezam e oprimem-se mutuamente se transformará num inferno vivo. Isto concorda com o princípio budista da unicidade da vida e do ambiente (esho funi). Nesta perspectiva, podemos estar confiantes de que, abraçando a Lei Mística e ensinando os outras a fazerem o mesmo, estamos firmando a base não somente para a nossa realização como indivíduos, mas para a paz e prosperidade de nosso país e do mundo.